sábado, 23 de junho de 2012

Interpretação de textos

                                                                                                                Redação de Giselle Lourenço

Este sábado, foi dia de atividades de interpretação de textos na oficina do Curta Sopa de Letras. No entanto, não fizemos interpretações metódicas como as dos moldes predominantes em ambiente escolar. Como trabalhamos com o Interacionismo, resolvemos nos aventurar a interpretações de textos poéticos. E aí, obviamente, interpretar poesia resulta em maior liberdade de pensamento e criação; a música é tocada no ritmo da subjetividade de cada um, pois sabemos que não pode haver uma única interpretação para uma poesia.
Hoje, sentimos e ouvimos a música de Milton Nascimento - Voa Bicho, e vejam que belíssima interpretação surgiu a partir dos participantes da oficina... E logo abaixo, vocês poderão ouvir a música no vídeo montado em homenagem à turma do CPH Dom Oscar Romero.
Ao final da atividade de interpretação, os participantes produziram uma poesia concreta, com versos que falam a respeito do tema em questão em formato de um pássaro. Parabéns, pessoal!



Voa Bicho

 

Milton Nascimento

 

Andorinha voou, voou, Fez um ninho no meu chapéu, E um buraco bem no meio do céu
A andorinha vai além, “voou, voou”, é um ser livre, vai ao longe. E porque vai ao longe, traz novidades e experiências de liberdade, por isso, ao fazer o ninho no meu chapéu, ela incute uma ideia, traz uma mensagem que se estabelece em mim, traz um sonho que eu compro, pois estar no meu chapéu significa que eu permiti que a ideia permanecesse em mim e que eu abracei este ideal. O buraco bem no meio do céu é algo manifestado fortemente em minha vida. Nas Sagradas Escrituras, sempre que há essa alegoria, essa figura que diz que o céu se abre, se rasga, enfim, é porque uma grande epifania aconteceu, e são as epifanias que marcam a nossa vida e se tornam divisores de águas para nós.

E lá vou eu como passarinho, Sem destino nem sensatez, Sem dinheiro nem pra um pastel chinês.
Quando vou como um passarinho, é porque a situação do encontro proporcionou que um pássaro libertasse o outro. O encontro com o outro pode ser muito libertador. E de repente, sem sensatez, nos despimos de cálculos e métodos para alçar voos que exigem mais coragem, mais paixão e mais impulsos. Somente uma andorinha livre, alguém que experimentou as perspectivas para além do mundo ao redor é que pode nos causar esse impacto, essa vontade de fazer descobertas e de se lançar. Tudo acontece tendo como ponto de partida o encontro. E quando me despojo de todas as preocupações desnecessárias é que consigo ter fôlego para ir adiante. Se estou despojado, sei que a cada dia bastará o seu cuidado. Sequer o pastel chinês é uma preocupação; esse alimento básico que pode ser comprado a baixo custo e que mantém a fome longe por um bom tempo, deixa de ser uma preocupação para o encontro com a liberdade.

A andorinha voou, voou, Fez um ninho na minha mão, E um buraco bem no meu coração
Assim como o ninho do chapéu representa a minha aceitação e apropriação da ideia que em mim foi incutida pela andorinha, o ninho em minha mão significa que além da ideia, a andorinha me deixa algo concreto nas mãos, uma ferramenta que me propicia a realização de um trabalho. Ela me traz as ideias, mas também me oferece algo concreto para a execução de um trabalho e não me deixa apenas a vislumbrar o céu de maneira abstrata. E se há um buraco no meu coração, é porque a andorinha me faz perceber que esse coração jamais estará completo enquanto bater. O buraco é o que move meu coração a dar passos em direção ao que irá completá-lo, mas é uma jornada interminável nesta terra.

E lá vou eu como um passarinho, Como um bicho que sai do ninho, Sem vacilo nem dor na minha vez
Ao deixar o ninho, sempre há dor, é tarefa difícil. Mas não há vacilo e nem dor na minha vez. A coragem e a força trazidas pela andorinha conduzem essa transposição sem dores, sem traumas; mais uma vez os traumas são minimizados pela beleza do encontro.

A andorinha voa veloz, Voa mais do que minha voz, Andorinha faz a canção, Que eu não fiz
A andorinha tem a força e a competência que eu não tenho. O que falta em mim é completado por ela. Aquilo que eu não sou capaz de fazer, ela faz com facilidade.

Andorinha voa feliz, Tem mais força que minha mão, Mas sozinha não faz verão.
No entanto, a andorinha não pode viver sem o encontro. Também ela possui um buraco em seu coração e sabe que sozinha não pode ganhar o céu. Ela voa para o encontro, voa em busca das metades de suas asas. O homem é um ser coletivo, sozinho, jamais conseguirá construir trabalhos de estruturas sólidas e que sejam perenes.

A andorinha voou, voou
Fez um ninho na minha mão
E um buraco bem no meu coração
E lá vou eu como um passarinho
Como um bicho que sai do ninho
Sem vacilo nem dor na minha vez.
Muitos pássaros cometeram erros tentando ser andorinhas solitárias. Vamos juntos, a partir do encontro com o outro, construir a nossa história e a história da nova humanidade!


sábado, 9 de junho de 2012

Projeto Curta Sopa de Letras

Iniciou-se neste sábado, 9 de junho, a Oficina de Curta-Metragem do Projeto Curta Sopa de Letras no Centro de Promoção Humana Dom Oscar Romero, da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. A maioria dos participantes são membros da PASCOM e o grupo já demonstra grande motivação para as propostas do Projeto.
Atentos, os participantes da oficina assistiam uma apresentação de um texto pelas colaboradoras do projeto que trabalham com teatro.


O Projeto foi idealizado pelos professores Paulo Henrique Pereira (responsável pelo processo de roteirização e filmagem) e Giselle Lourenço (responsável pelo módulo de produção de textos) e pode ser ministrado em qualquer espaço físico que comporte uma turma de no máximo 20 pessoas.
No primeiro dia da oficina do CPH Dom Oscar Romero, a escritora paraisopolitana Rosângela Fonseca falou aos participantes sobre como acontece seu processo de escrita e também contou como descobriu-se com o dom de escrever histórias e poesias.
Rosângela Fonseca falando sobre seu processo de produção de textos.
Estamos ansiosos em saber que histórias serão produzidas por um  grupo tão engajado como esse. Para nós, será um prazer trabalhar com essa turma. Inauguramos bem o ano de 2012!
Entre tantos outros textos, exploramos a poesia de Drummont e todos se comprometeram em fazer da escrita a pedra preciosa do caminho.


Uma pequena explicação sobre o trabalho:
Trabalhamos o processo de produção de textos através de noções redacionais, exploração da Língua Portuguesa e de gêneros textuais utilizando a sequência didática proposta pela Escola de Genebra - que visando repensar algumas práticas pedagógicas de professores de língua materna, defende a didática da diversificação e foge aos moldes tradicionais puramente gramaticais para proporcionar a socialização dos falantes de mesma língua materna - Interacionismo Sociodiscursivo. Após o processo de produção textual, os participantes são convidados a transformar o texto em roteiro para filmagem em linguagem cinematográfica. O último módulo é a produção do curta-metragem com o envolvimento de todos os participantes no processo de criação de vídeos. Conheça melhor os passos do trabalho e leia o release dos idealizadores em nosso perfil do Facebook: https://www.facebook.com/profile.php?id=100003741611292






quinta-feira, 31 de maio de 2012

Moacyr Pinto lança o livro "Tecendo o Amanhã"


Moacyr Pinto fala de seu livro "Tecendo o Amanhã" na Ciranda de Poesia na Cia Cultural Bola de Meia

Bom dia, pessoal!

Ontem (30 de maio), o escritor, sociólogo, professor e ex-secretário de educação de São José dos Campos, Moacyr Pinto esteve na Ciranda de Poesia para falar de sua mais nova obra que está sendo lançada: Tecendo o Amanhã.
Trata-se de um romance, porém muito próximo da realidade; a história tem como pano de fundo uma comunidade católica progressista que unida por objetivos comuns de liberdade, autonomia e humanidade empreende movimentos pela busca desses ideais.
A obra é inspirada em tempo e espaço na região do ABC paulista da época das primeiras fábricas de grande produção e do surgimento das primeiras forças sindicais não só dessa região como do país.
Toda a dialética desenvolvida pelo autor é fruto de sua própria militância. Professor Moacyr foi, desde muito cedo, trabalhador operário, sempre engajado em movimentos de liderança comunitária, e mesmo após a conquista de uma nova profissão como professor (fundamental, ensino médio e acadêmico), nunca deixou de estar inserido no contexto de forças intelectuais e comunitárias por mudanças e desenvolvimento da população pobre do país. Como ele mesmo diz, trata-se de uma obra literária a partir do chão. Por isso é tão próxima da realidade. Alguns elementos da obra são literalmente históricos, outros mais romanceados, mas o que o autor ressalta é que é um resultado de sua formação a partir da prática, a partir do engajamento e não de teorias construídas a partir de uma formação individualista.
Com relação à contribuição da Ciranda de Poesia para a cidade de São José dos Campos, o autor salienta que é duplamente formadora, uma vez que, acontece num ambiente amigável e é isso que dá margem para que se desenvolva o “fazer coletivo”, e que também possui uma contribuição fundamental para o desenvolvimento e formação mais subjetiva do leitor e do cidadão joseense.
Obrigada, Professor Moacyr, pela colaboração e disponibilidade.
Após a entrevista, gentilmente cedida. (Professor Moacyr e Giselle Lourenço).


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Homenagem a Portugal

Hoje, quero agradecer aos leitores de Portugal. É o país com a maior estatística de leitura deste blogue. Em uma singela homenagem a vocês, segue um lindo poema de uma autora que assina com o pseudônimo "Little Hut". Mil abraços aos portugueses!

"MINHA CIDADE É LISBOA"



Minha cidade é Lisboa.
Sou orgulhosa "alfacinha"
e lisboeta assumida.
Tenho orgulho em minha terra.
Minha cidade tão querida.

Subimos até lá acima,
ao alto do torreão
do Castelo de S. Jorge;
está Lisboa ali à mão.
Despida de preconceitos,
vestida só com o calor
do sol, do pai Portugal;
junto ao Tejo, seu amor.

É Lisboa feita em duas:
duas juntas numa só,
uma velha e outra nova.
Do alto do seu Castelo,
é fácil tirar a prova.

Os barcos subindo o Tejo.
A Sé, edifício velho.
Novo, o Shopping Amoreiras.
E este sol divinal,
torna as casas mais faceiras.

Do Miradouro da Graça,
vejo ruas estreitinhas;
e a Lisboa vélhinha
com edifícios de traça,
acho que ... Manuelina?

Eu não sou versada em traças;
já são coisas p´ra doutores.
Só quero descrever o orgulho
que tenho em ser portuguesa.
Lisboa dos meus amores!

Praça Marquês de Pombal,
Alameda Afonso Henriques,
a Basílica da Estrela,
mais as novas Avenidas
que comportam casas chiques.

Campo Grande e seu jardim
bonito, para lazer.
Lago e barcos p´ra remar.
Aqui chamamos 'gaivotas'
aos barcos de pedalar.

Adiante a Estufa Fria,
boa em tempo de calor,
p´ra visitar e aprender.
As mais variadas plantas
é sempre bom conhecer.

Na ponte, nos debruçamos,
da "25 de Abril".
Olhamos até à foz
do rio Tejo e abarcamos
toda a Costa do Estoril.

Mais perto, ali a dois passos,
é a Torre de Belém;
assinalando a partida
dos portugueses de antanho
à descoberta do "além".

"Jerónimos" rivalizam
com o Centro Cultural.
Enquadrados na paisagem,
mosteiro e edifício novo
não parecem nada mal.

Esqueci "Parque de Monsanto",
considerado o pulmão
da cidade de Lisboa.
Está menos vandalizado,
o que já é coisa boa.

Mas ... tudo tem um senão!

Quando Deus, p´ra distrair,
fez o mundo, disse Pedro:
-Oh! Deus! Mas há que convir
que tu fizeste borrada!
Tens países com excesso
de água, neve, frio, calor
e aí não falta nada?

Deixa, Pedro! Tu vais ver
o povo que eu lá vou pôr!

Na certa era Portugal!
É um jardim multicor.
Tudo bem equilibrado.
Temos um pouco de tudo
mas, "Zé Povinho" é danado!

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11/2000
laurabmartins@netvisao.pt

terça-feira, 22 de maio de 2012

A Cigarra e a Formiga

Desde Esopo, a fábula da cigarra e da formiga vem sendo contada e recontada, nas mais variadas versões.
Em La Fontaine, a fábula ganha uma grande difusão no Ocidente, e suas versões variam de acordo com o período histórico e com aquilo que o escritor quer denunciar ou apontar.
Na versão de Manoel de Barros, por exemplo, a formiga termina fazendo uma autocrítica sobre sua preocupação em amontoar coisas e não gastar tempo com outras coisas importantes também.
Hoje, quero compartilhar a minha versão de A Cigarra e a Formiga. Provavelmente, você perceberá as tendências de minha versão, e acho que não é para crianças...


A cigarra que ora cantara
Agora tem que rebolar
Chupa cana e assobia
Sapateia, late e mia
E ainda tem que batucar

Com isso o inverno chegou
E apesar de se esforçar
Foi posta no lado escuro
Do outro lado do muro
E tanta conta pra pagar

De novo a formiga malhou
E não precisou poupar
Tinha herança e grande umbigo
Nem quis se empenhar nos livros
E o mundo quis ganhar

E tem sido sempre assim
A cigarra a melhorar
A formiga herda a terra
Não se importa com a guerra
E não sabe o que é amar


Giselle Lourenço

sábado, 19 de maio de 2012

O que uma azeitona tem a ver com a Filosofia?


Você sabe qual a origem da palavra “conserva” ou “conservo”?
Significa, literalmente – com servo.
E isso, graças ao filósofo Hegel (filósofo moderno alemão) que construiu um pensamento de dialética em que um sujeito só se afirma em sua relação com o outro e que, isoladamente, nada representa.
Difícil? Nem tanto... Hegel fala da sobreposição das coisas, e em seu célebre caso “Senhor e Servo” ele nos introduz à sua dialética, de onde podemos entender então, a origem da palavra em questão. Vejamos a metáfora hegeliana a seguir:

Dialética do senhor e do escravo
Dois homens se enfrentam numa luta de reconhecimento. O primeiro arrisca a sua vida em prol do reconhecimento, o outro, por medo de perder a sua vida, se submete. Instaura-se assim uma relação entre senhor e servo. Senhor é senhor pelo seu servo e o servo é servo pelo seu senhor. Nenhum deles é o que é sem o outro. Este é o reconhecimento. O vencedor (o senhor) não mata seu adversário vencido (o servo), mas o conserva, pois é pelo servo que o senhor é reconhecido como senhor. Conservar, literalmente, significa com-servo, isto é, produzir um servo, que é resultado imediato da luta pelo reconhecimento.[1]

É claro que isso é uma metáfora e que servo e senhor aqui podem significar muitas coisas. O importante é fazer a relação da etimologia da palavra que usamos atualmente. Hegel observou esta dialética quando notou que a derrota prussiana foi um “mal necessário” ao espírito alemão, que serviu de alavanca para que, naquela situação histórica, a Alemanha pudesse ressurgir das cinzas.[2]
Fazendo então uma atualização semântica, podemos estabelecer uma relação de que tudo aquilo que mantemos conosco de maneira submissa equivale ao que irá nos servir. Mantemos uma relação de senhor com algo que dominamos e que prevemos com relação a como o objeto irá nos servir, por quanto tempo e de que maneira. Continuando o desdobramento filosófico do tema, é bom saber que há uma lógica interna da dialética hegeliana que se trata de uma marcha negativa da dialética. A metáfora de Hegel continua sua explicação dizendo que pelo fato de o servo ficar alheio aos produtos que produz para o seu senhor, acaba tendo que superar suas provações, tem que lutar e usar de criatividade para viver sem aquilo que produz para o senhor, e isso o transforma em um indivíduo que ganha mais liberdade que o seu próprio senhor porque produz e o senhor, por sua vez, apenas consome. A incapacidade senhoril de produzir e de criar, levando o senhor a ficar refém da produção de seu servo é chamada por Hegel de desvanecer contido, e a mudança de perspectiva de liberdade criada pelo servo é por ele chamada de desejo refreado.
Assim, quando você tem uma lata de azeitona em conserva em sua geladeira, a relação de conserva é cíclica, seguindo os moldes dialéticos hegelianos. Por quê? Porque ao mesmo tempo em que a azeitona é a senhora da relação entre ela e o líquido no qual está imersa, ela também é a portadora de um desvanecer contido, uma vez que, depende daquele líquido para permanecer em sua utilidade no fim para o qual foi posta em conserva.



[1] HEGEL, G. W. F. A. A fenomenologia do espírito. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os pensadores)
[2] Sobre a guerra franco-prussiana que derrotou a Prússia impondo a necessidade de uma renovação cultural e espiritual da nação alemã.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

O véu ainda não se rasgou


Consta nas análises de estudiosos e teóricos que, a dualidade formativa, ou seja, a bivalência abordada nos processos de educação humanos (a educação erudita e a educação para o fazer; a educação para a classe nobre como a educação intelectual e bélica e a educação para os plebeus para a produção de coisas úteis) que começa no mundo antigo, permanece até a revolução do cristianismo.
Despretensiosamente, eu já não concordaria com isso. Arriscaria dizer que o processo educacional ainda se adapta aos moldes do mundo antigo e alguns manipuladores da história nos fazem crer que passamos por um processo louvável de revolução e evolução.
A educação para o fazer ainda perdura nos dias de hoje. Basta olhar para os moldes e parâmetros educacionais que vigoram no sistema atual. Tudo muito velado, é verdade, mas totalmente dicotômico.
Ainda temos um sistema de ensino voltado para a performance tecnicista e tudo aquilo que for conivente com a lógica utilitária. Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira, Doutor e Mestre em Educação e Especialista em Filosofia Contemporânea e também líder de um grupo de pesquisas do CNPq intitulado “Globalização e Cidadania em perspectiva interdisciplinar”, diz em seu ensaio sobre A Performance Sob Uma Lógica Tecnicista:

Neste sentido, a ciência passa a ser uma força de produção, estando associada mais ao desejo de enriquecimento do que o de "saber". Como resultado, o investimento em pesquisa é voltado para aquelas áreas que dão lucro, ou seja, prioridade aos estudos voltados para as "aplicações"; enquanto isto, "os setores de pesquisa que não podem pleitear sua contribuição à otimização das performances do sistema, são abandonados pelos fluxos de créditos e fadados à obsolescência" (Lyotard). Sob o viés do ensino, questões políticas e socioculturais capazes de contribuir para a autonomia do indivíduo, deixam de ter sentido, e os alunos, inclusive das Ciências Humanas, preocupam-se apenas com a questão "onde vou aplicar isto?".[1]

Na Idade Antiga, a educação política era reservada a pequenas castas. Hoje, continua assim. Você não vê na maioria das escolas uma carga horária devidamente elaborada para as disciplinas de Filosofia e Sociologia, por exemplo. Ensinar a pensar dá trabalho, e aprender a pensar pode ser perigoso. Portanto, ainda dividimos as questões de ensino-aprendizagem sob o véu do templo (vale dizer que teologicamente no contexto cristão, o véu se rasgou, ou seja, nada mais divide a raça humana da aproximação com o Divino – Mateus 27, 50-51) que ainda não se rasgou na educação da sociedade neoliberal.


[1] SIQUEIRA, Holgonsi S. G. A Performance Sob Uma Lógica Tecnicista. Disponível em: http://www.algelfire.com/sk/holgolsi/performance.html. Acesso: 30 abr. 2012

terça-feira, 10 de abril de 2012

A Alma do Instrumento de Infância

por Giselle Lourenço (sobre seu violino)

Ele sempre esteve lá: tranqüilo, sereno, vermelho, ora fosco, ora brilhante, mas sempre esteve lá. Presente em meus sonhos, parecia uma extensão do meu braço esquerdo. O seu som era a extensão do Paraíso, às vezes ecoava aveludado, às vezes enternecia minha mente, outras vezes, malandro e com vontade própria, estardalhava meus ouvidos e num furor que só os belos astros podem ter, me beliscava a face com sua voz mais aguda a aquebrantar-se – era a corda arrebentando.
Hoje, ele ainda está lá. O lá era o sonho que agora é o aqui. Pude tocá-lo após a maturidade, maturidade talvez apenas de não ter dedos tão flexíveis como poderia quando criança e maturidade de ter que me dividir entre ele e outros astros não tão atraentes, não tão vermelhos, não tão foscos, não tão aveludados e não tão fascinantes, mas astros necessários para girar na órbita do chão meu de cada dia...
Hoje, ele fica quieto, repousa sereno, mas não admite não ser olhado e nem tocado. É orgulhoso e imponente demais pra não brilhar. Ele quer ser tocado sempre, e eu quero tocá-lo eternamente.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Dyrce Araújo fala sobre a Ciranda de Poesia

Com formação em Letras, filha e neta de professores de língua portuguesa, a escritora, educadora e membro da Academia Joseense de Letras Dyrce Araújo fala da importância da Ciranda de Poesia para o fomento da literatura em nossa região.

por Giselle Lourenço

A escritora e educadora Dyrce Araújo falou de forma intensa sobre cultura, educação e poesia ao Núcleo de Comunicação do Bola de Meia.
Dyrce é hoje, uma figura fundamental no processo cultural da região do Vale do Paraíba. Sua trajetória implica em, desde muito cedo, concomitante com o exercício de lecionar a língua portuguesa, ter apaixonado-se também por projetos comunitários, a princípio com propostas de trabalhos teatrais, mas que com o tempo ampliou-se para outras tantas linguagens artísticas que passaram a contribuir para o desenvolvimento de capacidade de expressão de várias comunidades na região.
Ganhou muita experiência ao começar seu trabalho como agente cultural na Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de onde, aos poucos, pela intensidade com que abraçava novos empreendimentos culturais, foi colaborando fortemente para um formato mais dinâmico de todo o processo de construção cultural da cidade, com um acento ainda maior para a Literatura e para a motivação da produção escrita dos autores regionais.
Dentre seus livros publicados, estão: “Quando a Casa Dorme”, “O Pecado Imortal”, “Sagrada Paixão”.
Dyrce foi, ainda, diretora de cultura de Jacareí e por quatro anos dirigiu a Biblioteca Pública da Fundação Cassiano Ricardo em São José dos Campos.
A escritora encontra-se citada em antologias e também no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras de Nelly Novaes Coelho, uma obra que reúne a pesquisa de verbetes das principais autoras brasileiras.
Dyrce tem sido frequentadora quase que assídua da Ciranda de Poesia, um projeto que acontece no Ponto de Cultura Bola de Meia e que reúne autores, poetas e apreciadores de poesia e literatura de toda a região. A professora nos conta que encontrou na Ciranda de Poesia do Bola de Meia, antes de mais nada, um grande acolhimento.
A autora acentua que hoje, há um esforço grande de escritores do Vale para que o incentivo à Literatura possa desenvolver-se ainda mais. Porém, ressalta que a região, principalmente a cidade de São José dos Campos já foi bem mais viva e rica culturalmente, mais especificamente no âmbito literário em meados das décadas de 80 e 90.
Dyrce fez questão de lembrar que, hoje, não tem conhecimento de alguma ação que envolva escritores e poetas na região de maneira frequente e articulada como o Projeto da Ciranda. “O que vejo hoje são iniciativas esporádicas de alguns poetas que se reúnem para tentar promover algo ou então eventos literários maiores mas que não possuem um formato de continuidade, como é o caso da Ciranda de Poesia” – explica.
A autora fala com admiração sobre as conquistas de permanência das atividades do Ponto de Cultura Bola de Meia, uma vez que, segundo ela, viu na cidade muitas iniciativas artísticas e culturais que começam, vigoram por algum tempo e que, de uma hora pra outra, terminam. Para o Bola de Meia, saber que a escritora carrega esta visão do Ponto de Cultura vem ao encontro daquilo que sempre prezamos com relação ao cultivo das capacidades de cada ser, da criação e disseminação do saber e do fazer coletivo.
Dyrce acha fundamental que educadores olhem mais para o Projeto Ciranda de Poesia para que, de alguma forma, articule uma extensão para as salas de aula, vendo na Ciranda o complemento pedagógico essencial para incentivo à leitura dos educandos.
A autora, enfim, salienta a necessidade de mais bibliotecas, mas coloca uma definição de bibliotecas como algo inovador, pois conceber a biblioteca como apenas o prédio que contém livros é algo que fica muito aquém das necessidades de mudanças culturais de nosso país. Dyrce imagina bibliotecas como um organismo vivo, que deve prezar pelo direcionamento, pela assistência pedagógica, com menos burocracia e mais vivência e trocas de experiências entre frequentadores, professores e funcionários.
Nós do Ponto de Cultura Bola de Meia agradecemos sempre a presença da professora Dyrce em nossas Cirandas e desejamos que mais promotores culturais possam lançar, a seu convite, os olhares para este espaço democrático de incentivo à poesia e à atividade de produção escrita.
Grata, professora Dyrce!
Agradecemos a todos os frequentadores e amigos de nossa Ciranda!


Giselle Lourenço entrevistando a Professora Dyrce Araújo



quinta-feira, 29 de março de 2012

A Publicidade Brasileira e a Desumanização

Quem assistiu, nos últimos dias, ao novo comercial da Peugeot, pode até ter dado algumas risadas, só não deu foi conta da gravidade da proposta incutida naquela simulação. Apenas para recordar: O suposto gerente de uma loja de automóveis solicita que o estagiário abra a porta, onde, do lado de fora, uma multidão aguarda para, a seguir, entrar como bois desgarrados passando por cima do estagiário e em seguida, o gerente reforça a outro colega: “Estagiário...” Ou seja, para situações assim, temos os estagiários, é pra isso que eles servem!
É óbvio que, não se trata de uma mediocridade só dos profissionais publicitários (que, diga-se de passagem, no Brasil, a publicidade e suas propostas são deprimentes, me perdoem os profissionais da área, e sei que existem as raríssimas exceções que merecem respeito e que salvam a categoria), mas trata-se também de que os profissionais estão apenas reproduzindo para um público maior, a mentalidade vigente de uma nação, onde a figura de um estagiário representa, justamente, aquele indivíduo que existe para ser explorado, fazer trabalhos que ninguém se presta a fazer e agir como uma verdadeira mucama. Essa cultura vem sendo reforçada nos últimos vinte anos, aproximadamente, principalmente dentro das corporações americanas e se acentua conforme a “América vai descendo”... E isso é ainda mais comum em ambientes empresariais, com objetivos mais técnicos e mercantis. Digo isso com propriedade, pois apesar de ter hoje, um pouco de experiência atuando como revisora de textos no mercado editorial e estar engatinhando na área da educação e idiomas, tenho vasta experiência nos setores administrativos de empresas de pequeno, médio e grande porte, onde, por muitas vezes, vi cenas similares às do comercial serem reproduzidas.
É muito entristecedor perceber que os telespectadores brasileiros assistem às coisas como, definitivamente, EXPECTADORES. Não questionam nada que lhes enfiam “goela abaixo”. Não somos educados no Brasil para percebermos a ideologia por trás de uma propaganda, não somos instigados, desde cedo, a desenvolvermos o pensamento crítico sobre o mundo que nos cerca. E daí, assistimos a coisas como essas e ainda concordamos, damos gargalhadas e tratamos de reproduzir esses comportamentos por não possuirmos padrões éticos pautados numa “autonomia moral”[1] que busca seus princípios do agir na sociedade com base nas reflexões acerca da realidade e voltadas para a promoção humana coletiva. O estagiário que recebe o trote hoje, é o funcionário que passará o trote amanhã e assim caminhamos.
Algumas coisas são boas de aprender com irmãos de outras culturas. Em países como a Suécia e Alemanha, por exemplo, a figura do estagiário é de suma importância para o desenvolvimento do país. Seus tutores tem o cuidado de enxergar neles o talento em potencial que poderá dar continuidade ao progresso da nação e ao seu desenvolvimento intelectual. Até mesmo, no Japão, onde a carga horária é intensa até para estagiários, existem programas governamentais vinculados a “ministérios” de cultura e educação de forma a estimular a maior interação possível desses aprendizes com suas escolhas profissionais. E na Alemanha, dependendo do programa de estágio, os estudantes, se forem dos mais empenhados e interessados, podem também submeter textos à instituição de ensino, como fontes de pesquisa, baseados na observação desses ambientes profissionais e em suas experiências adquiridas. Eu acrescentaria aqui, numa ousadia que me é particular, que é válido lembrar de uma regra preciosa na ordem monástica beneditina, onde São Bento diz que, na dúvida, quando todos os outros monges mais experientes não tiverem opiniões ou posições para determinados assuntos, escutem o mais jovem noviço.
Estagiários podem servir o café? Podem! Podem abrir e fechar a porta? Podem! Podem limpar o chão? Podem! E devem tudo isso fazer! Mas devem fazer orientados por um mestre, no sentido mais nobre da palavra, para que aprendam o valor de cada trabalho, até porque, para nosso pleno desenvolvimento, precisamos exercitar várias áreas do cérebro que diversos tipos de tarefas nos podem ajudar. Ter este “olhar de cego que vê além” é que possibilitará o amadurecimento profissional e o respeito pela pluralidade de talentos, todos necessários. E aí, eu acrescento que orientar estagiários também é tarefa nobre e poucos a fazem com excelência e sabedoria.
Provavelmente, serei criticada por avaliar sempre negativamente o pensamento massivo brasileiro, por nunca enaltecer nada na minha pátria. Se isso for considerado falta de patriotismo, então não sou patriota. Se eu tiver que fingir que está tudo bem em meu país e que nada há que se fazer para melhorá-lo, e que expressar opiniões a respeito da alienação coletiva é um erro, então, não sou patriota mesmo. Nesse caso, terei que compactuar com o pensamento muriliano, afinal quem não se lembra desses versos?

Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família tem por testemunha a Gioconda. (trecho de poesia de Murilo Mendes)



Obs.: Dedico esse texto à professora Andrea Santos, que sabe orientar como ninguém suas estagiárias e com quem tive o prazer de aprender muitas coisas.


[1] O termo “Autonomia Moral” é utilizado pela pesquisadora educacional e psicopedagoga Telma Vinha em seus textos sobre uma construção coletiva das ações morais pautadas nos princípios éticos e que devem ser do conhecimento de todos os indivíduos para que não reproduzam comportamentos baseados em códigos de conduta em que desconheçam seu real sentido.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A Prática Pedagógica Informal Oriental

por Giselle Lourenço
Às vezes, imersa que sou no estudo da cultura e filosofia orientais, acabo registrando algum ocorrido nos vagões de minha mente cheia de brumas.
Hoje, queria contar sobre a experiência de um renomado filósofo alemão (Eugen Herrigel) que, como eu, interessou-se muito cedo pela filosofia do Oriente e após ser nomeado professor de História da Filosofia na Universidade de Tohoku, no Japão, mudou-se para lá com a esposa e concomitantemente ao o trabalho de docente em Filosofia, empreende uma busca espiritual calcada no misticismo oriental aliada à prática de uma das artes mais “inúteis” que existe: a arte do arqueiro, o tiro com arco e flecha, muito praticada no Japão por mestres Zen-budistas.
Seu mestre era ninguém menos que Kenzo Awa, um dos maiores mestres nessa modalidade que não sei se podemos chamar de esporte; e arte também é uma definição que limitaria seu entendimento considerando-se o que o Ocidente relaciona à arte. Talvez, para alguns amantes das artes, a palavra signifique um caminho espiritual para a iluminação, e se assim for, então estará entendido também o sentido de arte aplicada ao arqueiro Zen.
O que chama a atenção é que Eugen conta que por um longo tempo, não aprendera a respiração correta para a prática da envergadura e tensão do arco, motivo pelo qual ele empregava tamanha força para manter o arco envergado de forma a “conter o mundo” – uma evergadura muito intensa. E durante todo esse tempo, o mestre Kenzo o observou passivamente sem alimentar uma ânsia de corrigir a respiração de seu aluno – e era exatamente nela que estava todo o segredo da habilidade necessária para envergar o arco; habilidade e não força.
Eugen, depois de muito tempo, aprendeu a respirar corretamente e chegou à conclusão de que o sucesso residia em sua nova maneira de respirar, pois conseguira, com grande habilidade, empunhar a flecha e envergar o arco sem ter a sensação de ter que retirar toda a força do solo através do tensionamento da musculatura das pernas.
Sobre essa descoberta de seu sucesso e sobre o tempo que seu mestre o observou sem nada falar, quis perguntar a um amigo – também aluno de Kenzo – o motivo de seu mestre nunca ter lhe dito algo a respeito de sua respiração e postura erradas, ao passo que este lhe respondeu: “Um grande mestre tem que ser, ao mesmo tempo, um grande educador. Se o aprendizado tivesse sido iniciado com os exercícios de respiração, jamais o senhor se convenceria de sua influência decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse nos próprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe lançou.”
Esse é um belo exemplo de uma das “práticas pedagógicas” orientais, que obviamente, não serve para uma aula de Língua Portuguesa, pois não vamos assistir nossos alunos cometerem erros e esperar que um dia caiam em si para entender que o ensino oferecido pela professora era importante e até que isso ocorra, permitir que eles escrevam na sua frente coisas como “na onde”, “mais eu sou assim”, “sou mas eu” e observar passivamente, não!
Mas na informalidade das situações cotidianas, a observância passiva do mestre serve para refrear, futuramente, toda a prepotência, pretensão, convencimento e alienação do aprendiz. E como somos todos aprendizes de alguma coisa...
Vale ressaltar que o termo "Prática Pedagógica Informal Oriental" foi uma expressão utilizada por mim nesse texto e que não é uma expressão em uso em nenhuma linha de pesquisa ou produções textuais; tento chamar a atenção para uma atitude interessante de um mestre e que merece ser observada, mas não significa que tenha aplicabilidade em situações diversas, principalmente no ensino formal, exemplo que citei apenas para ilustrar a postura de quem ensina nas mais variadas situações.

Você pode encontrar mais conteúdos sobre a arte do tiro com flechas em: HERRIGEL, Eugen. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. Editora Pensamento, 1983. 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Poesia Chinesa

A poesia chinesa, assim como a arte da pintura chinesa, está imbuída de toda sua filosofia milenar, ou seja, a forma tradicional, mística e totalmente simples de ver o mundo e de apreender a essência das coisas - enxergar as coisas como elas realmente são. Geralmente, todo o pensamento chinês é intimamente ligado ao Tao, que num sentido mais literal quer dizer "Caminho", mas também quer dizer algo bem maior e ao mesmo tempo algo muito simples. A mística taoista consiste em ir ao cerne do objeto e de não separar observador e objeto: tudo é uno. O Tao é simples e é a partir dele que muitos poetas se inspiram para escreverem seus textos. Talvez, necessite, num outro momento, de uma maior explanação sobre a essência das coisas para ocidentais não iniciados na filosofia taoista, pois há relutância devido ao condicionamento histórico-cultural.
Importa saber que, para o poeta chinês, é quase unanimidade a descrição da afinidade pessoal com a natureza em suas poesias - essa seria a marca dos poetas taoistas.
Outra coisa interessante é que a métrica da poesia chinesa consiste, na maioria das vezes, por uma formação de seis a sete sílabas por verso - um poder de síntese inigualável, que daí podemos entrever aquilo que, anteriormente, referi como "o simples". O simples está em tudo na escrita chinesa! Para traduzir com lealdade esses versos de seis ou sete sílabas, seja para o inglês ou para o português, não gastaríamos menos que duas linhas, isso se o tradutor tiver um poder de síntese e concisão precisos! 
É comum funcionários atarefados utilizarem suas pausas para escrever suas poesias. Na poesia a seguir, algumas alegorias podem ser observadas com total significado embasado no pensamento chinês, como por exemplo "cortinas de névoa", que significam a percepção do vazio ilimitado.
"O crepúsculo descendo do ermo", provavelmente, alude ao horário do dia, em que, para o pensamento taoista, o anoitecer e a calmaria da madrugada é o momento em que a essência do universo encontra-se em maior união com a essência do corpo humano, momento mais propício para a pausa da meditação.
O silêncio citado no poema é condição à priori para a serenidade e esta, por sua vez, é a antessala para a iluminação interior. Segue a poesia:

Desmontado do cavalo,
O crepúsculo descendo no ermo, 
Ouço no silêncio
O murmúrio de um regato da montanha.
Pássaros cantam, pétalas caem;
Nenhum sinal de gente. 
A janela de minha cabana
Tem uma nuvem branca por cortina.

Ch`uan Tê-yu, descrevendo uma visita à montanha sagrada Mao Shan. Tradução para o inglês: John Blofeld.
Mais poesias taoistas podem ser encontradas em: BLOFELD, John. Taoismo, O Caminho Para a Imortalidade. Editora Pensamento, 1979.

domingo, 11 de março de 2012

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
morro da Babilônia
Num barracão sem número.
Uma noite, ele chegou no bar vinte de novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu.
(BANDEIRA, 1993).
O poema traz uma visão positiva da morte, ao menos nesse contexto específico.
Os quatro primeiros versos me parecem relatar uma situação em que um indivíduo não possui uma vida tão atrativa pelos padrões dominantes. No quarto verso, a figurativa "sem número" parece dar uma tônica de que trata-se de mais um João, mais um José, entre tantos outros de nossa sociedade, sem número, sem lenço, sem berço, um ninguém. A descrição de seu trabalho como sendo uma feira-livre também parece entrever a ideia de que trata-se de um cidadão do mundo no sentido mais negativo, um errante, um sem-teto, sem posses.
O lugar que ele escolhe para se divertir possui um nome emblemático, pois vinte de novembro é a data em que se comemora não somente o dia da Consciência Negra como também o dia de aniversário de Zumbi dos Palmares, um líder que acolhera escravos fugitivos em uma comunidade oferecendo novas perspectivas de vida e de trabalho. É como se João, um escravo errante, pudesse encontrar refúgio no quilombo.
Após uma sequência de descontrações, o que mais poderia João fazer? O que de mais extraordinário poderia acontecer em sua vida além da dança, da música e da bebida? Para alguém carregado de marcas sociais e dificuldades, é como se a morte pudesse parecer o apogeu da vida, o gozo maior, o ápice da noite. Por isso, no poema, parece haver uma ideia de integração entre ambas como se não pudessem ser vistas como opostas, como forças contrárias; é como se a morte fosse a coroação da existência e o alcance da iluminação tão perseguida.