quinta-feira, 29 de março de 2012

A Publicidade Brasileira e a Desumanização

Quem assistiu, nos últimos dias, ao novo comercial da Peugeot, pode até ter dado algumas risadas, só não deu foi conta da gravidade da proposta incutida naquela simulação. Apenas para recordar: O suposto gerente de uma loja de automóveis solicita que o estagiário abra a porta, onde, do lado de fora, uma multidão aguarda para, a seguir, entrar como bois desgarrados passando por cima do estagiário e em seguida, o gerente reforça a outro colega: “Estagiário...” Ou seja, para situações assim, temos os estagiários, é pra isso que eles servem!
É óbvio que, não se trata de uma mediocridade só dos profissionais publicitários (que, diga-se de passagem, no Brasil, a publicidade e suas propostas são deprimentes, me perdoem os profissionais da área, e sei que existem as raríssimas exceções que merecem respeito e que salvam a categoria), mas trata-se também de que os profissionais estão apenas reproduzindo para um público maior, a mentalidade vigente de uma nação, onde a figura de um estagiário representa, justamente, aquele indivíduo que existe para ser explorado, fazer trabalhos que ninguém se presta a fazer e agir como uma verdadeira mucama. Essa cultura vem sendo reforçada nos últimos vinte anos, aproximadamente, principalmente dentro das corporações americanas e se acentua conforme a “América vai descendo”... E isso é ainda mais comum em ambientes empresariais, com objetivos mais técnicos e mercantis. Digo isso com propriedade, pois apesar de ter hoje, um pouco de experiência atuando como revisora de textos no mercado editorial e estar engatinhando na área da educação e idiomas, tenho vasta experiência nos setores administrativos de empresas de pequeno, médio e grande porte, onde, por muitas vezes, vi cenas similares às do comercial serem reproduzidas.
É muito entristecedor perceber que os telespectadores brasileiros assistem às coisas como, definitivamente, EXPECTADORES. Não questionam nada que lhes enfiam “goela abaixo”. Não somos educados no Brasil para percebermos a ideologia por trás de uma propaganda, não somos instigados, desde cedo, a desenvolvermos o pensamento crítico sobre o mundo que nos cerca. E daí, assistimos a coisas como essas e ainda concordamos, damos gargalhadas e tratamos de reproduzir esses comportamentos por não possuirmos padrões éticos pautados numa “autonomia moral”[1] que busca seus princípios do agir na sociedade com base nas reflexões acerca da realidade e voltadas para a promoção humana coletiva. O estagiário que recebe o trote hoje, é o funcionário que passará o trote amanhã e assim caminhamos.
Algumas coisas são boas de aprender com irmãos de outras culturas. Em países como a Suécia e Alemanha, por exemplo, a figura do estagiário é de suma importância para o desenvolvimento do país. Seus tutores tem o cuidado de enxergar neles o talento em potencial que poderá dar continuidade ao progresso da nação e ao seu desenvolvimento intelectual. Até mesmo, no Japão, onde a carga horária é intensa até para estagiários, existem programas governamentais vinculados a “ministérios” de cultura e educação de forma a estimular a maior interação possível desses aprendizes com suas escolhas profissionais. E na Alemanha, dependendo do programa de estágio, os estudantes, se forem dos mais empenhados e interessados, podem também submeter textos à instituição de ensino, como fontes de pesquisa, baseados na observação desses ambientes profissionais e em suas experiências adquiridas. Eu acrescentaria aqui, numa ousadia que me é particular, que é válido lembrar de uma regra preciosa na ordem monástica beneditina, onde São Bento diz que, na dúvida, quando todos os outros monges mais experientes não tiverem opiniões ou posições para determinados assuntos, escutem o mais jovem noviço.
Estagiários podem servir o café? Podem! Podem abrir e fechar a porta? Podem! Podem limpar o chão? Podem! E devem tudo isso fazer! Mas devem fazer orientados por um mestre, no sentido mais nobre da palavra, para que aprendam o valor de cada trabalho, até porque, para nosso pleno desenvolvimento, precisamos exercitar várias áreas do cérebro que diversos tipos de tarefas nos podem ajudar. Ter este “olhar de cego que vê além” é que possibilitará o amadurecimento profissional e o respeito pela pluralidade de talentos, todos necessários. E aí, eu acrescento que orientar estagiários também é tarefa nobre e poucos a fazem com excelência e sabedoria.
Provavelmente, serei criticada por avaliar sempre negativamente o pensamento massivo brasileiro, por nunca enaltecer nada na minha pátria. Se isso for considerado falta de patriotismo, então não sou patriota. Se eu tiver que fingir que está tudo bem em meu país e que nada há que se fazer para melhorá-lo, e que expressar opiniões a respeito da alienação coletiva é um erro, então, não sou patriota mesmo. Nesse caso, terei que compactuar com o pensamento muriliano, afinal quem não se lembra desses versos?

Minha terra tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família tem por testemunha a Gioconda. (trecho de poesia de Murilo Mendes)



Obs.: Dedico esse texto à professora Andrea Santos, que sabe orientar como ninguém suas estagiárias e com quem tive o prazer de aprender muitas coisas.


[1] O termo “Autonomia Moral” é utilizado pela pesquisadora educacional e psicopedagoga Telma Vinha em seus textos sobre uma construção coletiva das ações morais pautadas nos princípios éticos e que devem ser do conhecimento de todos os indivíduos para que não reproduzam comportamentos baseados em códigos de conduta em que desconheçam seu real sentido.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A Prática Pedagógica Informal Oriental

por Giselle Lourenço
Às vezes, imersa que sou no estudo da cultura e filosofia orientais, acabo registrando algum ocorrido nos vagões de minha mente cheia de brumas.
Hoje, queria contar sobre a experiência de um renomado filósofo alemão (Eugen Herrigel) que, como eu, interessou-se muito cedo pela filosofia do Oriente e após ser nomeado professor de História da Filosofia na Universidade de Tohoku, no Japão, mudou-se para lá com a esposa e concomitantemente ao o trabalho de docente em Filosofia, empreende uma busca espiritual calcada no misticismo oriental aliada à prática de uma das artes mais “inúteis” que existe: a arte do arqueiro, o tiro com arco e flecha, muito praticada no Japão por mestres Zen-budistas.
Seu mestre era ninguém menos que Kenzo Awa, um dos maiores mestres nessa modalidade que não sei se podemos chamar de esporte; e arte também é uma definição que limitaria seu entendimento considerando-se o que o Ocidente relaciona à arte. Talvez, para alguns amantes das artes, a palavra signifique um caminho espiritual para a iluminação, e se assim for, então estará entendido também o sentido de arte aplicada ao arqueiro Zen.
O que chama a atenção é que Eugen conta que por um longo tempo, não aprendera a respiração correta para a prática da envergadura e tensão do arco, motivo pelo qual ele empregava tamanha força para manter o arco envergado de forma a “conter o mundo” – uma evergadura muito intensa. E durante todo esse tempo, o mestre Kenzo o observou passivamente sem alimentar uma ânsia de corrigir a respiração de seu aluno – e era exatamente nela que estava todo o segredo da habilidade necessária para envergar o arco; habilidade e não força.
Eugen, depois de muito tempo, aprendeu a respirar corretamente e chegou à conclusão de que o sucesso residia em sua nova maneira de respirar, pois conseguira, com grande habilidade, empunhar a flecha e envergar o arco sem ter a sensação de ter que retirar toda a força do solo através do tensionamento da musculatura das pernas.
Sobre essa descoberta de seu sucesso e sobre o tempo que seu mestre o observou sem nada falar, quis perguntar a um amigo – também aluno de Kenzo – o motivo de seu mestre nunca ter lhe dito algo a respeito de sua respiração e postura erradas, ao passo que este lhe respondeu: “Um grande mestre tem que ser, ao mesmo tempo, um grande educador. Se o aprendizado tivesse sido iniciado com os exercícios de respiração, jamais o senhor se convenceria de sua influência decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse nos próprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe lançou.”
Esse é um belo exemplo de uma das “práticas pedagógicas” orientais, que obviamente, não serve para uma aula de Língua Portuguesa, pois não vamos assistir nossos alunos cometerem erros e esperar que um dia caiam em si para entender que o ensino oferecido pela professora era importante e até que isso ocorra, permitir que eles escrevam na sua frente coisas como “na onde”, “mais eu sou assim”, “sou mas eu” e observar passivamente, não!
Mas na informalidade das situações cotidianas, a observância passiva do mestre serve para refrear, futuramente, toda a prepotência, pretensão, convencimento e alienação do aprendiz. E como somos todos aprendizes de alguma coisa...
Vale ressaltar que o termo "Prática Pedagógica Informal Oriental" foi uma expressão utilizada por mim nesse texto e que não é uma expressão em uso em nenhuma linha de pesquisa ou produções textuais; tento chamar a atenção para uma atitude interessante de um mestre e que merece ser observada, mas não significa que tenha aplicabilidade em situações diversas, principalmente no ensino formal, exemplo que citei apenas para ilustrar a postura de quem ensina nas mais variadas situações.

Você pode encontrar mais conteúdos sobre a arte do tiro com flechas em: HERRIGEL, Eugen. A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen. Editora Pensamento, 1983. 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Poesia Chinesa

A poesia chinesa, assim como a arte da pintura chinesa, está imbuída de toda sua filosofia milenar, ou seja, a forma tradicional, mística e totalmente simples de ver o mundo e de apreender a essência das coisas - enxergar as coisas como elas realmente são. Geralmente, todo o pensamento chinês é intimamente ligado ao Tao, que num sentido mais literal quer dizer "Caminho", mas também quer dizer algo bem maior e ao mesmo tempo algo muito simples. A mística taoista consiste em ir ao cerne do objeto e de não separar observador e objeto: tudo é uno. O Tao é simples e é a partir dele que muitos poetas se inspiram para escreverem seus textos. Talvez, necessite, num outro momento, de uma maior explanação sobre a essência das coisas para ocidentais não iniciados na filosofia taoista, pois há relutância devido ao condicionamento histórico-cultural.
Importa saber que, para o poeta chinês, é quase unanimidade a descrição da afinidade pessoal com a natureza em suas poesias - essa seria a marca dos poetas taoistas.
Outra coisa interessante é que a métrica da poesia chinesa consiste, na maioria das vezes, por uma formação de seis a sete sílabas por verso - um poder de síntese inigualável, que daí podemos entrever aquilo que, anteriormente, referi como "o simples". O simples está em tudo na escrita chinesa! Para traduzir com lealdade esses versos de seis ou sete sílabas, seja para o inglês ou para o português, não gastaríamos menos que duas linhas, isso se o tradutor tiver um poder de síntese e concisão precisos! 
É comum funcionários atarefados utilizarem suas pausas para escrever suas poesias. Na poesia a seguir, algumas alegorias podem ser observadas com total significado embasado no pensamento chinês, como por exemplo "cortinas de névoa", que significam a percepção do vazio ilimitado.
"O crepúsculo descendo do ermo", provavelmente, alude ao horário do dia, em que, para o pensamento taoista, o anoitecer e a calmaria da madrugada é o momento em que a essência do universo encontra-se em maior união com a essência do corpo humano, momento mais propício para a pausa da meditação.
O silêncio citado no poema é condição à priori para a serenidade e esta, por sua vez, é a antessala para a iluminação interior. Segue a poesia:

Desmontado do cavalo,
O crepúsculo descendo no ermo, 
Ouço no silêncio
O murmúrio de um regato da montanha.
Pássaros cantam, pétalas caem;
Nenhum sinal de gente. 
A janela de minha cabana
Tem uma nuvem branca por cortina.

Ch`uan Tê-yu, descrevendo uma visita à montanha sagrada Mao Shan. Tradução para o inglês: John Blofeld.
Mais poesias taoistas podem ser encontradas em: BLOFELD, John. Taoismo, O Caminho Para a Imortalidade. Editora Pensamento, 1979.

domingo, 11 de março de 2012

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
morro da Babilônia
Num barracão sem número.
Uma noite, ele chegou no bar vinte de novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu.
(BANDEIRA, 1993).
O poema traz uma visão positiva da morte, ao menos nesse contexto específico.
Os quatro primeiros versos me parecem relatar uma situação em que um indivíduo não possui uma vida tão atrativa pelos padrões dominantes. No quarto verso, a figurativa "sem número" parece dar uma tônica de que trata-se de mais um João, mais um José, entre tantos outros de nossa sociedade, sem número, sem lenço, sem berço, um ninguém. A descrição de seu trabalho como sendo uma feira-livre também parece entrever a ideia de que trata-se de um cidadão do mundo no sentido mais negativo, um errante, um sem-teto, sem posses.
O lugar que ele escolhe para se divertir possui um nome emblemático, pois vinte de novembro é a data em que se comemora não somente o dia da Consciência Negra como também o dia de aniversário de Zumbi dos Palmares, um líder que acolhera escravos fugitivos em uma comunidade oferecendo novas perspectivas de vida e de trabalho. É como se João, um escravo errante, pudesse encontrar refúgio no quilombo.
Após uma sequência de descontrações, o que mais poderia João fazer? O que de mais extraordinário poderia acontecer em sua vida além da dança, da música e da bebida? Para alguém carregado de marcas sociais e dificuldades, é como se a morte pudesse parecer o apogeu da vida, o gozo maior, o ápice da noite. Por isso, no poema, parece haver uma ideia de integração entre ambas como se não pudessem ser vistas como opostas, como forças contrárias; é como se a morte fosse a coroação da existência e o alcance da iluminação tão perseguida.