quinta-feira, 31 de julho de 2014

Pensando o Tempo

Ando pensativa sobre o tempo...
Sinto saudade de um tempo que nem bem toquei...
Como é que se chama a saudade daquilo que nunca lhe pertenceu? Alguns diriam que é a ânsia pelo eterno. Não sei. O tempo é um bordado lindo que, se visto pelo avesso, deixa entrever arestas e confusões.
Confusões sobre o tempo faz a gente no tempo de hoje. Acha que ele vai mais depressa. Acha que ele é senhor de tudo. A gente acha muito sobre o tempo, só não acha mesmo o tempo. Será?
Sinto falta de quando, para almoçar com o outro, não precisava telefonar. Quando muito, chegavam cedo para o fim de somar as mãos do fogão para a mesa ou completar a parte do açougue. E que coisa é essa de ter de ligar duas semanas antes pra avisar que te esperem para o café? Nesses momentos, acharia bom a não-invenção do telefone. Queria saber qual seria a desculpa.
Sinto falta de quando os potes de plástico (que não eram Tuppeware) iam e vinham numa procissão de oferendas da criatura para a criatura. Eu me lembro que eles iam no domingo cheios de canjica e voltavam por volta da quarta-feira cheios de empadas. Na semana seguinte, era a vez dos vizinhos das três casas abaixo. Em um mês, via-se a procissão feita pela rua inteira. Era a fração do pão na fração dos dias. Nunca mais acompanhei essa procissão. No polo onde vivo, as procissões não levam muito pão e nem movem muito a vida. Não sei se essas procissões ficaram remanescentes em algum paraíso perdido. Quem me dirá?
Sinto falta de quando as mães levavam seus filhos pra rua, sentavam-se à beira do meio-fio (era assim que se tinha por nome a "guia" de calçada na minha terra), e ali, as crianças eram crianças de pés descalços e .amizade construída sobre os momentos da vida em que não se precisava fingir nada. Hoje em dia, as mães não querem levar os filhos pra rua porque é lugar de desocupado. Porque precisam limpar a casa. As mulheres limpam tanto suas casas aqui no meu polo que parece até que Deus está vindo visitar... E quem vem? Muitas vezes, ninguém mesmo. Limpam para não receberem ninguém... Trancam-se lá os membros da família e respiram juntos o odor da lavanda e do isolamento, cada um no seu canto. É assim que a vida ensina hoje.
O isolamento é primo do individualismo. Individualidade é coisa rara por aqui. Mas em nome dela, as pessoas se isolam umas das outras, reivindicando, para si, esse direito. Elas atingem o individualismo, que é primo do egoísmo. E de repente, passam a repetir comportamentos e pensamentos massivos. Então posso repetir: individualidade é coisa rara por aqui.
Arrisco dizer que o individualismo é o mal deste século e o pai dos males psíquicos que cortam nossa aurora. Parece que até casa grande e senzala tinham mais comunhão. O que acontece com os outros que continuam apenas sendo os outros? Um alvoroço de gente em períodos de entrada e saída de trabalho não pode significar contato ou conexão. Aliás, o homem nunca esteve tão desconectado, apesar das conexões de banda larga. E ainda há aquela velha desculpinha: "Sabe como é a correria, né? Os dias estão numa correria só! ". Bom, pode até ser... Mas daí a usar a falta de tempo como condição existencial mais sublime que alguém possa alcançar é um erro mortal e um pecado que te excomunga da vida. E já notaram como tem gente que profere com orgulho a sua falta de tempo?
E por fim, nem é o muito falar que faz comunhão de vidas... O homem nunca usou tanto as palavras. E nunca delas entendeu tão pouco. Quem sente falta das mesmas coisas que eu, tende a usar menos as palavras, ou aventura-se a nelas encontrar repouso usando a tecla, a tinta ou a pena.
Giselle Lourenço