Discurso sobre o Dia do Vizinho, pronunciado no dia 20 de agosto
de 2015 por ocasião da comemoração do aniversário natalício de
Cora Coralina no encontro literário “O Poder da Palavras” em São
José dos Campos, a convite da biógrafa de Cora e escritora Rita
Elisa Seda.
Vizinho: palavra de origem latina (vicinus). Significa "aquele
que é da mesma aldeia". Aldeia, por sua vez, significa "um
loteamento de pequenas proporções".
Avizinhar-se então, poderia ser entendido como relação com aquilo
que está perto. Foi assim que viveu seus dias sobre a terra a Dona
Cora Coralina. Mulher que soube estabelecer uma relação com tudo
que lhe rodeava:
Na vertical, sob seus pés, o mais próximo era a terra. Seu chão de
terra, como ela falava. Uma vez percebido seus pés próximos ao
chão, nunca mais deixou de reconhecer que a força e o sustento lhe
vinham da terra. Foi uma cultivadora de terras, entre sementes, entre
flores, entre frutos... No milharal de sua gleba, a expressão máxima
de seu cuidado. Portanto, mulher vizinha da terra.
Na horizontal, percebeu que nenhum de nós é sozinho no mundo.
Aprendeu, desde muito cedo, que a relação com o outro é o que nos
dá uma ideia de nós mesmos e que é no trato diário com as pessoas
que retiramos da vida o sumo bem. Entre amigos, construiu sua
fortaleza de pedra. Portanto, mulher vizinha dos homens.
Mas há uma vizinhança em Cora Coralina que precisa ser compreendida
para além da rua, para além do bairro, para além do prédio...
No tarde da vida - expressão dela própria - suas portas estavam
abertas para o Brasil e para o mundo. Na mocidade, estava acessível
a quem dela quisesse se aproximar, dado o teor de suas crônicas e a
profundidade de suas exortações, pois só fala de coisas profundas
quem não tem medo da intimidade.
Intimidade é algo que, hoje, está em desuso. Intimidade exige
compromisso, exige cuidado. Não temos tempo para cuidar. Cada um por
si; deus, se ainda não morreu na contemporaneidade, talvez não seja
por todos. E assim seguimos, ignorantes do significado de "vizinho".
Avizinhar-se é para quem tem disposição, para quem tem vitalidade
na alma. A mesma vitalidade que pulsava no coração da
Mulher-Monumento de Goiás, que avizinhou-se do Brasil e que hoje,
tendo deixado tão estimada herança em suas obras, nos ensina e nos
inspira a uma vida mais vizinha.
Diziam os que conheceram Cora que ela mantinha zelo e cuidado pelas
fontes e nascentes. Dizia que era necessário cuidar da fonte.
Sabedoria ambiental e humana! Cuidar do vizinho é cuidar da fonte. A
célula que manterá nossas relações e propulsionará a
fraternidade universal começa em nosso raio de visão e de ação.
Cuidando do vizinho, que é a luz da rua, cuidamos da fonte de
energia que propagará o amor em nossos dias e para as gerações
futuras.
Em sua mensagem, Cora dizia que a sua geração não a
compreenderia... Portões trancados, correntes, cadeados, muros. É
uma convenção trancar-se, e às vezes necessário também, pois
desacostumamos do cuidado. Se alguém se abre, se doa, inspira outros
à doação, dificilmente é compreendido. Eu receio que não somente
a geração da poetisa não a compreendeu, mas também nós, ainda
hoje, somos resistentes e ignorantes de muitas de suas mensagens.
Estamos num processo. Aqui, nesta geração – a minha geração -
começa um desvelar de Cora, recebendo sua mensagem com inquietações;
mas ainda há muito a ser contemplado e um véu a ser rasgado sobre a
grandiosa espiritualidade que abarca sua poesia viva e escatológica.
Faço votos de que, ao menos, o esforço da proximidade e da
vizinhança seja, por nós, melhor considerado e que Cora, com seu
arsenal de bons amigos, nos ajude a cultivar os nossos.
Encerro com um trecho/pergunta de sua autoria quando da apresentação
do Dia do Vizinho em Andradina (1968), para que os brasileiros de meu
tempo, tão carentes de vizinhança (e eu me incluo nisso), em um
momento de incertezas e desencontros no qual vivemos, possam enxergar
nos versos coralineanos algumas luzes para o cultivo de nossas fontes
mais naturais:
"Por que nos fechamos tão hermeticamente na nossa rudeza
individual se a vida nos põe sempre juntos em encontros frequentes e
cotidianos e se temos tanto para dar de nós e tanto para receber dos
outros?..."
Giselle Lourenço
* Cora Coralina propôs que fosse criado o "Dia do Vizinho" quando viveu em Andradina. A data sugerida foi a mesma de seu aniversário natalício (20 de agosto). Em 1968, quando Cora já havia voltado para Goiás, com o aval do prefeito, patrocinou a publicação da "Apresentação do Dia do Vizinho" em panfletos que atestavam a adesão à causa. Esta data ficara marcada na memória dos andradinenses.
Fonte: Cora Coralina, Raízes de Aninha. Ideias e Letras, 3ª ed.,
2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário